Terça-feira, 16 de Outubro de 2007

HipHop is Dead

Em 2006, Nas quase que criou um slogan com o título do seu álbum "HipHop is Dead", que colou na boca de muita gente e que retratava uma situação de perca de chama e brilho do rap americano. Nas justificava essa morte do HipHop, com o total desvirtuamento da cultura por parte da indústria musical até com a contribuição de muitos "hiphoppers", com a dramática queda de criatividade e qualidade lírica dos mc's americanos, que estavam mais preocupados em fazer valer a filosofia "hustler" de fazer dinheiro rápido e de qualquer forma, e com a formatação total dos álbuns e dos mc's que pareciam todos iguais e todos plásticos.

Reflecti sobre este assunto, e obviamente concordando com Nas em relação ao total empobrecimento e formatação do rap americano, eu acho que a principal razão é outra. O rap americano sempre foi muito pródigo em produzir personagens muito carismáticas para além de grandes rappers. O rap americano produzia grandes figuras.

Personagens extraordinárias que valiam muito mais pelo que representavam do que pelo que rimavam. " Characters " diferentes das pessoas comuns, pela seu exotismo, pela sua força, e pelo seu misticismo.

Alguns exemplos:

2pac – o super thug revolucionário
Eminem- o miúdo branco perturbado, produto dum lar disfuncional
Onyx- Os psico-killers
Ol Dirty Bastard- o Alcoólatra
Prodigy- O street nigga
NWA- os Gang members
Public Enemy- Os Black Panthers
Redman- o Punk-thug
Ice T- O Don, O Pimp
Common- O humanista, o espiritualista
Fat Joe- O gambino latino
Busta Rhymes- O excêntrico
DMX-O marginal religioso
Dead Prez- Os activistas

Era isto que apaixonava as pessoas, imaginar a vida destes ídolos, acreditar piamente que eles eram o que rimavam. Estas personagens tinham tanta força e credibilidade que tudo combinava. A sonoridade, o flow, a atitude, a indumentária, o discurso tudo isso combinava  Ninguém disse que era impensável quando saiu a notícia que 2Pac tinha disparado contra um polícia, ninguém se escandalizou quando Ol Dirty foi apanhado bêbado e drogado a roubar ténis numa loja, ninguém acharia impossível se saísse uma notícia a dizer que Sticky Fingaz tinha morto alguém, todos achavam normal quando viam Redman altamente pedrado em concertos, entrevistas ou mesmo no estúdio, ninguém se escandalizaria se os Dead Prez fossem presos por fazer parte dum grupo clandestino que estaria a conspirar contra o governo. Estas personagens eram altamente credíveis, provavelmente também porque em muitos casos eram realmente genuínas, e era muito por causa disso que tinham milhões de seguidores. Gente apaixonada pela mística que imanavam, pelo estilo de vida, pela atitude, pelo carisma.

"HipHop Is dead" porque os Estados Unidos, cada vez menos consegue criar esse tipo de personagens criativas e fascinantes, esse tipo de rappers que apaixonam. Hoje tudo é muito pouco credível, porque os rappers têm muito menos carisma, e porque entre a música, a pessoa que são e a atitude que mostram há muito pouca coerência. Por exemplo seria impensável os Onyx encherem um álbum com sons de amor e sons para o club. Exactamente porque não combinava com o "character" deles. Os álbuns que faziam serviam essencialmente para sidementar a personagem deles. Reproduziam toda a atmosfera e o estilo de vida que proclamavam, desde as músicas aos interlúdios.  E hoje quando ouvimos os álbuns mainstream desses novos "street hustlers" vemos sempre os álbuns cheios com supostos "hit singles" que nada combinam com a personagem que eles querem "vender". Daqui também podemos depreender que o próprio trabalho dos A&R's e dos produtores executivos está a ser muito mal feito. Pela gula de querer vender rápido com sons fácies e formatados não conseguem ajudar a criar mc's com carisma e credibilidade, também por isso é que as carreiras dos rappers americanos são cada vez mais curtas. São artistas sem solidez, não encantam.

Toda esta reflexão que fiz é essencialmente uma tentativa de fazer uma análise sociológica sobre o afrouxamento do rap americano. Nem sequer quis vincar a minha posição pessoal sobre estes dados. A Indústria musical norte americana, com o know how e poder económico que tem pode facilmente forçar a criação desse tipo de personagens carismáticas e apresentá-las ao público com o máximo de credibilidade. Com bons castings, bons A&R's, managers e produtores executivos isso facilmente se consegue. Se não o estão a fazer é porque provavelmente ainda não diagnosticaram isto que explanei neste texto ou então porque simplesmente acham que não é rentável $ o suficiente. Ou então ainda porque pode ser realmente difícil criar algo novo. Disse isto porque não acho que a existência desses " characters " seja necessariamente algo de positivo para o HipHOp. Creio ser indesmentível que a ausência deles fez com que rap esteja hoje a perder a chama nos estados Unidos, mas pode-se dizer que muito provavelmente algumas dessas personagens que para nós eram tão credíveis e genuínas podem também ter sido "fabricadas" pela indústria musical.

Valete

 

Terça-feira, 16 de Outubro de 2007

Tempo Para Nós

Para além de ter acabado praticamente com o analfabetismo na Venezuela, de ter reforçado o papel do Estado enfraquecendo o poder do sector privado, e de ter arranjado um programa de venda de petróleo subsidiado a países que não podem pagar a preço de mercado, há pouco tempo o Governo de Hugo Chavez fez aprovar uma lei que obrigará à redução da jornada laboral de 8 para 6 horas diárias. Os venezuelanos a partir de 2010 passarão a trabalhar apenas 6 horas por dia, sem que essa redução horária afecte o seu vencimento mensal.

Chavez não é certamente um homem perfeito, também discordei de algumas medidas que tomou, mas o que é inegável é que Chavez é dos governantes com mais sensibilidade humana de todo o espectro político mundial. Um governante, deve governar para as pessoas, preocupar-se com o nosso bem-estar, deve estar empenhado em resolver os nossos problemas. O Mundo foi invadido por políticos que ou são corruptos, ou são uma cambada de tecnocratas que só sabem falar de números, défices, economia, enquanto as nossas vidas quase que não mudam e lá saímos nós moribundos do trabalho depois de 8 horas agonizantes.

É mais que nítido que todos precisamos de mais tempo para nós, mais tempo para nos divertirmos, mais tempo para namorarmos, mais tempo para aprendermos, mais tempo para estarmos com os "nossos", só queremos mais tempo. Chavez percebeu isso e deu tempo às pessoas. Deu-lhes tempo para serem mais felizes, tempo para se sentirem menos escravas. Logo apareceu o patronato, os partidos de direita, e os economistas neo-liberais a dizer que com menos horas de trabalho, o país produz menos e entra em decréscimo económico, por isso as pessoas não podem ter mais tempo, reclamavam eles. Não sou economista e já ando farto dessa politiquice insensível que tenta justificar tudo através de dados económicos, mas o que me parece também óbvio é que a trabalhar apenas 6horas as pessoas estão mais felizes, estão mais motivadas e até poderiam produzir tanto ou mais que em 8 horas de trabalho. Não deve ser uma equação fácil, mas nem me interessa que se debrucem muito tempo nela, porque quero que se foda esse economicismo. As pessoas são sempre o mais importante, ninguém tem que se sacrificar uma vida inteira para que os países atinjam esse tão anseado conforto financeiro. As pessoas querem tempo, querem ser felizes, têm sonhos para realizar. E querem isso já, ninguém quer esperar mais 5 ou 10 ou 20 anos. Arranjem outras soluções para o "vosso" sonho de vitalidade económica, não sacrifiquem mais as pessoas.

Manos tudo é política, a vossa felicidade depende quase sempre de decisões políticas, informem-se e votem em políticos que se preocupem convosco. Votem em políticos com sensibilidade.

Valete

 

Domingo, 9 de Setembro de 2007

Apelo

Iniciei no começo de 2007 uma cooperação com o Centro de Correcção Padre António de Oliveira em Caxias, que passa por realizar alguns projectos relacionados com a cultura HipHop, que vão desde workshops, concertos até apoio a hiphoppers ou potenciais hiphoppers pertencentes aquele centro. Nessa instituição estão miúdos (alguns mesmo muito novos) em regime interno ou semi-interno, por terem praticado alguns actos ilícitos. A maioria são jovens que crescerem em bairros problemáticos, ambientes hostis, lares disfuncionais e que sem amparo familiar e social foram facilmente vítimas do apelo das ruas e do crime. Quase todos eles adoram rap e principalmente rap tuga. Muitos deles sonham ser mc's. Escrevem letras sobre as suas experiências no bairro, nas ruas, nas esquadras, no centro de correcção com uma genuinidade impressionante. Alguns não sabem escrever e pedem a outros que escrevam por eles, e fazem tudo isto sem beats.

Daqui queria pedir a todos os manos que produzem que enviem beats para que estes manos possam escrever em cima de algo, e materializar as ideias que têm em música. Tudo serve, eles não querem fazer álbuns , querem apenas fazer músicas e sentirem-se felizes com as suas criações. Por isso podem mandar beats novos, antigos, usados, completos, incompletos. Tudo serve. Mc's que têm álbuns gravados se puderem disponibilizem os beats dos vossos álbuns que também serve. Manos que sacam e conhecem sites onde se pode fazer o download de beats estrangeiros dêem a dica também. Tudo serve.

Se tiverem material de som que não usem ou possam oferecer como mesas de mistura, gravadores de pistas, pratos, microfones, auscultadores, placas de som, programas de gravação, material informático etc, tudo isso também é muito bem vindo e agradecemos infinitamente a vossa ajuda.

Muito obrigado ao Conductor, Musik, Raze, Sam e Raptor pelo apoio que já deram. Também queria pedir a produtores, dj's e B-boys que tenham interesse neste projecto que se disponibilizem para partilhar as suas experiências ou possivelmente colaborar em workshops a realizar no centro de correcção.

Podem enviar coisas ou comunicar para os seguintes contactos:

Contactos – ccaxias@hotmail.com
Telefone – 914155465 – Diogo Calheiros

Valete

 

Sábado, 8 de Setembro de 2007

Concertos, novo álbum e outras dikas

Prometi há uns tempos realizar alguns concertos ainda neste ano de 2007 em alguns pontos-chave do país. O Bónus passou cá o verão todo , deverá regressar para Cuba em Setembro. Tive todas as condições reunidas para efectuar os concertos que prometi.

Resolvi adiar os concertos em primeiro lugar porque ainda não encontrei uma “ideia” de concerto diferente do “típico” show de rap, o que para mim é importante visto que já não actuo há 5 anos, e em segundo porque estou embrulhado agora na feitura do meu 3º álbum que se intitulará “360 Graus” e a ideia é concentrar-me totalmente nele até porque será um álbum duplo e exigirá muito de mim

Daqui peço desculpas a todos por este adiamento, mas também daqui vão as garantias que os concertos de Valete + Canal 115 vão se mesmo realizar, depois deste meu álbum “360 graus” e certamente com mais fervor, porque vou poder acrescentar ao set ao vivo sons do novo álbum.

Devo confessar que durante muito tempo estava-me a cagar para dar concertos, por algumas razões pessoais, e pelas condições a que estavam sujeitos a maioria dos concertos de rap tuga. Agora com alguns problemas meus resolvidos, e com o melhoramento das condições dos concertos (pelo menos para alguns mc's) sinto mesmo essa necessidade de voltar a subir aos palcos. A isto também acrescenta-se o facto de sentir que seria uma lacuna na minha carreira, acabá-la sem actuar ao vivo sons do “Educação Visual”, “Serviço Público” e outros.

Daqui um obrigado para os manos Sam e Conductor, porque são manos que por mérito próprio já conseguiram desbloquear algumas “portas, e tentaram ajudar-me a mim e a outros mc's a passar por essas “portas” e a mostrarem-se a outros públicos. Real Homies.

A importância de fazer outro álbum agora, vem do facto de me estar a sentir na minha melhor forma de sempre, e de perceber que devo aproveitar este factor para fazer um álbum (que certamente será bem diferente de tudo o que já fiz), antes de ser sufocado pela minha vida profissional e por uma possível vida conjugal. É algo que acontece a muitos rappers, que quando chegam a determinada fase da sua vida, abandonam o rap, e o publico nunca tem a oportunidade de lhes ver no seu auge. É um abandono precoce que realmente vitima muito o Rap tuga.

O meu próximo álbum também virá contextualizado com um projecto que se está a desenvolver com manos de Moçambique, Angola e Brasil, e que se transformará numa organização lusófona que deverá movimentar-se nesses 3 países + Portugal, para desenvolver um intercâmbio e criar circuitos de distribuição e de concertos para mc's de toda a lusofonia.

Sei que este blog também é muito visitado por manos no Brasil, nos Palops e por lusófonos espalhados pelo mundo . Por isso devo dizer que recebi convites para actuar em São Paulo, Maputo, Luanda, São Tomé, Praia, Luxemburgo, Paris, Londres e algumas cidades na Suiça. Não se proporcionou pelas mesmas razões que descrevi em cima, mas depois do lançamento do álbum, estou disponível e muito interessado em actuar nesses países e encurtar as distâncias com todos os irmãos lusófonos e não só.

A partir daqui quero mandar foder todos esses organizadores de espectáculos que me convidaram para concertos e que me oferecerem cachets como se eu ainda andasse a fazer maquetes. Também quero mandar foder uns certos empresários que se ofereceram para me representar e depois vêm-me dizer como me devo comportar, o que devo fazer, o que devo dizer, o que devo vestir, com quem devo estar etc. Ganhem flexibilidade suficiente para puderem chupar os vossos paus fdp's. Props para todos os que me abordaram com respeito e com entendimento pelo meu trabalho.

Outras dikas

Todos os dias manos apanham-me na rua e dizem-me: “ O teu fórum isto, o teu fórum aquilo”. Eu não sou o fórum da Horizontal manos. O fórum da Horizontal é um espaço público online, onde quem quiser tem a liberdade para se expressar e partilhar o que entender, obviamente com a regulação e moderação necessária que nem é delineada por mim. Sinceramente acho o fórum da Horizontal assim como outros algo de muito positivo para o HipHop tuga. Partilha-se todo o tipo de informação e de certa forma até tem sido um centro de aprendizagem para muitos manos que se querem inteirar sobre o HHtuga e afins. Como todos os fóruns também tem coisas menos salutares, mas em vez de nos incomodar, devemos encarar como stand up comedy ou ficção científica. O fórum tem muitas pessoas adultas, mas também umas bem novas, e não podemos pedir a um miúdo de 12 ou 13 anos que se comporte como se tivesse 30.

Aos manos do fórum, peço-lhes que continuem a participar, tragam mais gente interessada também para participar e que sejam reais com vocês mesmos. Hoje o fórum cria correntes de opinião e naturalmente afecta e influencia muitos membros activos do nosso HipHop. Opinem, critiquem, comentem mas façam-no com responsabilidade. Digam aquilo que acreditam, mas sempre com a ideia que o objectivo é ver o nosso HipHop cada vez melhor.

Álbum do Bónus : o Bónus ainda está a estudar em Cuba, em 2008 ou 2009 deverá regressar definitivamente a Portugal e nessa altura certamente começará a trabalhar no seu álbum

 Álbum do Adamastor : O Adams, já tinha alguns sons para o seu álbum “Politicamente Incorrecto”, decidiu que queria arranjar uma sonoridade muito própria para o álbum. Nesta altura ainda está à procura de produtores que lhe consigam dar essa sonoridade, é um mano que trabalha e é muito ocupado com outras coisas fora da música, por isso o ritmo para a feitura do seu álbum nunca pode ser o ideal, mas também a pressa nunca foi amiga da arte. Quando tivermos mais novidades daremos aqui no site.

Poesia Urbana vol 2 – Sinto que o HipHop tuga está numa fase crucial de transição. Alguns mc's estão a evoluir muito bem, outros que eram muito bons no passado não se têm conseguido refrescar, e também se nota que está a aparecer uma nova geração de mc's com muito boa capacidade e muita fome. Alguns deles muito novos e por isso certamente que daqui a uns anos estarão ainda mais fortes. Por isso a altura para o lançamento da Poesia Urbana vol 2 será mesmo para daqui a alguns anos. Quando tivermos mais novidades também daremos aqui no site.

Amanhã ou depois de amanhã colocarei aqui no blog um apelo muito importante, fiquem atentos.

Valete

 

Sábado, 8 de Setembro de 2007

O Prazer do Sacrifício

No nosso tempo histórico, no capitalismo de mercado, nos nossos estados neo-liberais, nas nossas condutas e estilos de vida, o hedonismo aparece como um elemento marcante.

Há pouca paciência para sacrifícios, em geral, mas sobretudo e na minha opinião na nossa geração.

Fomos educados num tempo de comida rápida, relações rápidas, espaços encurtados pela rapidez de um tempo em ebulição. Não esperamos 3 dias pelo carteiro, recebemos um e-mail instantaneamente. Não temos que cortar lenha para aquecer a comida. Não temos que costurar a nossa roupa nem fazer camisolas à mão. Queremos agora, temos agora…e aceitamos pouco os atrasos da incompetência ou os adiamentos (quando não são por nós determinados)

É cómodo. Quase sempre vivemos assim e há sempre o metro a passar dentro de um punhado de minutos…

Nada contra tampouco. É sinal da evolução da técnica e das relações sociais.

A razão pela qual falo disto e porque penso que esta questão tem relevância neste espaço de opinião, é a relacionada falta de espírito de sacrifício em actividades que pressupõe militância e em que o hedonismo só existe se lhe preceder trabalho e entrega quotidiana.

No hip hop, em qualquer das suas vertentes ou formas de expressão, exige-se esse espírito e essa entrega. Exige-se uma rotina de trabalho, uma disciplina e um método. Treino como para qualquer outra actividade artística ou até desportiva.

Para nos superarmos, para competir, para evoluir de dia para dia, temos de nos entregar à técnica, ao estudo, à criação e ao método.

Mesmo que seja uma escolha nossa fazer rap (por exemplo, porque podia falar de qualquer outra actividade ligada ao hip hop) e não uma obrigação, como ir à escola ou levar o lixo à rua (=P), o sacrifício não é algo que nele não exista. O rap exige trabalho, exige que passemos horas em repetição ou a aperfeiçoar as nossas fragilidades.

Se não gostamos da nossa escrita e só valem 3 rimas das 16 que escrevemos, amanhã escrevemos o dobro, ou o triplo, experimentamos novos métodos, inovamos, tentamos, até que tenhamos 16 boas rimas no caderno. E depois disso escrevemos mais, sempre mais, e rimamos mais vezes, e tornamo-nos mais exigentes ainda. Subimos a fasquia, ficamos viciados. Custa, desilude, desmotiva por vezes. Gasta-se tempo. Tempo que poderia servir para praticar o hedonismo, mas não deixamos a militância se é o rap que nos dá pica.

Ninguém diz que é divertido repetir a mesma rima 500 vezes até que saia fluida como a imaginamos. Ninguém diz que é divertido andar a carregar material, a desmontar computadores, a gravar, trocar, transportar, pedir, conseguir, comprar cd's quando se faz, perde, ganha, troca, melhora, adapta, sequencia, um beat. Ninguém diz que tem piada quando o autocarro tarda, quando o palco do concerto é uma merda, quando o som tem ruído, o tipo é chato, quando não há saldo no telemóvel para pedir emprestada aquela coisa mesmo importante, etc…

…Mas não há rosas sem espinhos e o rap não é só festa…antes da festa há trabalho.

O rap bom tarda em sair, tarda em ser ouvido, como tarda a esperada recompensa, a visibilidade e os holofotes. Sendo que mesmo aí não está provado que desapareçam os espinhos…e até é bem provável que aumentem em muitos aspectos.

Gosto de pensar que o rap e os rappers, o hip hop e as suas manifestações, são como o vinho do porto e sabem melhor quando amadurecem.

Não estou a falar de espera…estou a falar de trabalho! Estou a falar de pôr menos as culpas no material, ou na falta dele, no preconceito colectivo com a novidade, na falta de tempo, na falta de dinheiro, nos monopólios editoriais, nas exclusões por critérios variados, etc… Estou a pedir esforço e prazer na evolução. Estou a pedir bom rap!

Eu acho que há muita vontade de que as coisas apareçam feitas. Há pouco trabalho e muita sede de frutos. Vejo muita pressa e pouca consistência e tenho pena que o sacrifício exigido nestas actividades não seja visto como uma forma de hedonismo também.

Não há nada melhor do que fazer coisas criativas precisamente porque o processo já é uma compensação, já é fruição. Não temos de ter um objectivo definido para nos divertirmos enquanto fazemos. Não temos de ter um destino para curtir o caminho. Mas quando chegamos onde queremos o prazer é maior! Se nos propomos temos de nos cumprir. É esse o prazer do sacrifício.

Capicua – SYZYGY

 

Domingo, 17 de Junho de 2007

Pimp the System

Tive acesso a um estudo de mercado sobre a música portuguesa e que certamente também foi consultado por várias editoras, rádios e canais de música. Nessa sondagem que abrangeu pessoas de classes, idades, ocupações, zonas, raças e sexos diferentes, o meu nome estava referenciado na categoria de HipHop, como um dos mc's portugueses que gozava de maior preferência por parte do público. Para meu maior espanto, Halloween também estava nessa lista dos rappers mais “almejados”, estando até à frente de outros mc's e grupos de HipHop com exposição massiva nas rádios e nos canais de televisão. Surpreendente e extraordinário porque o Halloween tem apenas um álbum editado, não tem nenhum clip a rodar nas televisões, nem nenhum som na playlist das rádios mais conhecidas.

Para a MTV, por exemplo, é fundamental conhecer esse tipo de estudos, e principalmente os resultados na categoria de HipHop, porque o HipHop para além de estar na moda também foi o estilo musical que nos últimos anos mais cresceu junto das comunidades jovens (publico alvo da MTV). Hoje mais do que nunca eles são forçados a ter HipHop na sua programação.

Um videoclip de uma música hardcore, áspera e subversiva como “Anti-Heroi” entra na Hitlist da MTV não porque se adapta aos modelos alegóricos do panorama audiovisual mainstream, mas sim, porque existe hoje uma agremiação grande de jovens que tem vindo a crescer com o “hiphop tuga” e que exerce uma pressão indirecta sobre estes centros de divulgação musical, obrigando-os aos poucos a transformar a sua grelha, e a passar também os artistas mais reconhecidos nas “ruas” em vez de só passarem os artistas formatados e impingidos pelas editoras majors.

Nesta altura em que no HipHop português já se notam vários vestígios de plastificação musical sustentada por editoras e pela comunicação social, é importante que os verdadeiros mc's, e principalmente aqueles que têm uma mensagem mais interventiva e progressista usem o conceito “Pimp the System”. É importante que saibamos tirar proveito da “moda do HipHop” e destes espaços maiores de promoção de corporações multinacionais como a MTV, para disseminarmos a nossa ideologia e fazermos uma digna representação do HipHop. A ideia é: Revolucionar usando os meios do Sistema. Pimp the System.

Em diferentes alturas artistas não estandardizados como Dead Prez, The Roots, Common, Erykah Badu, Mos Def etc, conseguiram uma rotação significativa na MTV americana, chegando assim às massas e podendo assim educá-las politicamente, socialmente ou musicalmente. Eu próprio também fui alvo desse processo educativo. Hoje afirmo sem incertezas que eu seria uma pessoa totalmente diferente se nos anos 90 não fosse um espectador assíduo do “Yo MTV Raps” ( falo do antigo “Yo”, não dessa patetice que dão agora ). Aqueles clips, aqueles artistas, aquelas entrevistas, aquelas jam sessions causaram em mim uma mudança irreversível. Acredito que para melhor.

Por tudo isto, digo que é indispensável que promovamos as nossas músicas, usemos todos os canais possíveis, é necessário que cheguemos ao máximo número de pessoas, mas que não caiamos na armadilha de nos adaptarmos ao que eles querem que o HipHop seja. O HipHop somos nós e não o que eles querem que seja. É suicida promovermos a nossa cultura com o “basiquismo” à la Mundo Secreto. A música já está cheia de coisas iguais, coisas óbvias, coisas fáceis. A música está cheia de anti-arte. Vamos promover HipHop na MTV, na Sic Radical, na TVI onde quer que seja, mas com skills, com criatividade, com complexidade, com arte. Vamos promover o HipHop com HipHop.

Valete

 

Segunda-feira, 28 de Maio de 2007

Entre o fácil e o difícil – quando o demasiado fácil é demasiado difícil de entender!

Eu sou uma miúda que gosta de rap.

Mas gosto pouco que me “dêem música”.

Gosto de rap, de bom rap em português. Gosto ouvir a nossa língua rimada e de apreciar as suas nuances em vozes de corpos diferentes, em vários olhares…

Gosto de pensar que são infinitas as combinações possíveis de vocabulário e que as abordagens também podem ser sempre diferentes, mesmo que os temas se repitam.

Gosto de rimas que me surpreendem, percorro músicas e álbuns à espera que a palavra seguinte seja a mais inesperada, mas ao mesmo tempo a única que poderia responder perfeita a cada precipitação da tarola, a cada impacto do bombo.

Gosto de sinónimos quando são vastos e de figuras de estilo.

Gosto pouco de Mc's que querem ter muito estilo e fazem figuras.

Acho que o que distingue um bom músico e, neste caso, um bom Mc, é o respeito pelo público, a sua destreza rítmica e a sua consistência e genialidade lírica, sendo impreterível que em todos estes níveis dê o seu melhor e trabalhe para se ultrapassar. É isso que se espera de um Mc, é isso que ele deve honrar, enquanto função, enquanto missão.

Respeitar o público passa sobretudo por não oferecer uma “embalagem” vazia, ornamentada, atractiva, com ares de “obra-prima”, mas sem qualquer sumo após espremida a técnica e desconstruída a mensagem. Passa por não assumir que aquela rima que injustamente não foi rasurada, passará pelos ouvidos dos “putos” e deixará o impacto que a descoberta da roda teve na história da humanidade.

Ritmo e Poesia…Cadência minimalista, compassada, para elevar enquanto suporte uma mensagem rimada que se destaca. Ritmo sem mensagem não é Rap, mesmo que estilística e tecnicamente tudo corra pelo melhor…

E mesmo que para alguns Poesia seja apenas um conjunto de palavras combinadas de forma bucólica e aérea, estética, mas não necessariamente consistente enquanto discurso (entenda-se, enquanto algo que faz sentido), não podemos aceitar essa leviandade se pretendemos ser críticos e maduros enquanto público.

Há que subir a parada. O Hip hop cresceu, há variedade, não podemos, nem precisamos de ser condescendentes com “rimas de manjerico” (para citar Sam the Kid) ou com pseudo-surrealismos de quem esconde a sua incapacidade lírica e ideológica, por detrás de lugares-comuns e frases super-compostas, ao estilo “random”, com as palavras mais “exóticas” do dicionário de sinónimos.

Não podemos aceitar rimas fáceis, daquelas de escola primária, nem rimas aparentemente complicadas, mas que trocadas em miúdos equivalem às primeiras multiplicadas por ZERO!

Sublinhe-se que não me refiro a principiantes, ou a Mc's votados a uma certa invisibilidade pública, falo aqui de rappers mais ou menos “consagrados”, cujos trabalhos são editados, com maior ou menor tiragem, independentes ou não, mas que têm uma capacidade de divulgação e exposição consolidada. Falo dos que têm a responsabilidade de honrar o facto de serem “exemplos” para os principiantes, dos que devem aproveitar a oportunidade de se fazerem ouvir, dos que já não têm desculpa para serem medíocres, ou apologistas da lei do menor esforço, do menor resultado.

I – o “Pseudo poeta surrealista”

Metáforas…não é difícil faze-las, aprendemos na escola que são como as comparações mas sem “como”, ou seja, não têm de ser nem esotéricas, nem rebuscadas, têm de ter sentido e servir a mensagem (entenda-se “o que se quer MESMO dizer”).

Frases encriptadas em “filigranas” pseudo-poéticas e sem sentido, referências permanentes com patrocínio Wikipédia, discursos labirínticos com falsa complexidade, conteúdos tão “profundos” que no fundo, mesmo no fundo, nem os autores sabem bem o que significam e como aterraram aleatoriamente nas suas estrofes… só “passam” realmente se o público for tão ingénuo como estes “filósofos” querem acreditar que é (para sossegar a sua mediocridade intelectual).

Escrever não é como fazer um “pudim instantâneo” em que se misturam umas palavras caras, umas metáforas furadas e muito malabarismo retórico, e qualquer um “papa”, mesmo que passados 5 minutos já não tenha nada no “estômago”

Para escrever bem é preciso ler e ouvir outros autores, é preciso organizar os temas que se querem tratar, numa sequência lógica, com uma estrutura clara, para que depois do “consumo” sobre mensagem e o receptor possa retirar para si um sentido, um contributo.

Há que dar muitas voltas às palavras para que elas nos sirvam, para que elas digam por nós o que queremos expressar e não o oposto…estilo jogo de Scrabble em que já que temos a palavra ali, completamos as letras ao seu redor para ganhar mais pontos.

Para os que fazem renda com as palavras e a quem foge o sentido facilmente, por entre as crateras, que a sua inconsistência e fragilidade discursiva, vão abrindo, um bom exercício seria isolar frase a frase e ler, pelos olhos dos outros, para imediatamente ver que não fazem qualquer sentido.

Procurar dentro de um estilo poético ou ideológico uma afirmação estilística ou alguma distinção, implica consistência.

II – entre o “rapper do Canal Panda” e o “percussionista dos inventários”

Rimas criadas pela facilidade, em que reina a quase coincidência fonética e se põe num segundo plano a sua utilidade e lógica, não só são tão comuns como as palavras que contêm, como acabam por ser honestas, no sentido em que a sua “ingenuidade” é directamente proporcional à do seu autor.

Todos gostamos de cadências complicadas, de fluidez técnica, de estilismos esteticamente arrojados e tecnicamente corajosos, mas daí a sermos permissivos com frases ocas e sequências de palavras cuja combinação só é justificada pelo facto de rimarem, deveria existir uma grande distância. Há uma diferença entre jogos de palavras e inventariação de palavras rimadas, estilo lista, como a que vem nos dicionários de rimas.

Claro que é mais fácil tentar criar um sentido mínimo entre duas palavras que rimam, do que escrever o que se quer mesmo dizer de forma rimada. Se for a preguiça a mãe destes deslizes é um péssimo princípio, se for por uma questão estilística, em que o flow se sobrepõe ao conteúdo, voltamos a ter de reforçar a ideia de que ritmo sem poesia não é Rap.

Talvez fosse um bom exercício para quem escreve ao estilo “Panda”, começar por rejeitar sistematicamente as 5 primeiras hipóteses que saltam para a caneta, mesmo que tenham sempre servido, quando se procura nas gavetas mentais a palavra que rima com a que já está escrita no caderno.

Para os tecnicistas sacrificadores de conteúdo, talvez fosse aconselhável reverem as reais motivações da sua escrita, para perceber se têm de facto preocupações com a mensagem, pois caso não tenham podem sempre inventar palavras e aí já não terão limitações na sua diversificada percussão oral.

Que fique algo depois de ouvir…
Queremos mesmo reter a mensagem…e isso é o mínimo que um Mc pode fazer pelo seu público.

Eu sou uma miúda que gosta de Rap.

Mas gosto de Rap, já não acho piada ao “atirei o pau ao gato”.

Capicua – SYZYGY

 

 

Segunda-feira, 7 de Maio de 2007

É música!

Quando falamos de música e de hip hop especificamente, utilizamos constantemente pequenos ou grandes rótulos para definir estilos, grupos, correntes, por vários critérios e com vários objectivos. Falamos de “hip hop”, de “hip hop tuga”, de “hip hop consciente”, de “hip hop comercial”, etc., “engavetamos” rappers e estilos nessas “etiquetas” e simplificamos o discurso e a nossa percepção da música e das performances de cada artista. Definimos melhor distinções e facilitamos as avaliações, mas simplificar pode por vezes levar a que sejamos simplistas.

Os critérios, tal como os grupos por eles identificados e apartados, são subjectivos e muito variáveis e, muitas vezes, não somos tão específicos na sua definição, como somos assertivos ao dividir grupos e correntes. Ser simplista é precisamente usar critérios para definir grupos sem reflectir em torno da sua pertinência, limites e das próprias consequências das divisões e das distinções. Não que seja de todo negativo distinguir e identificar diferenças entre mc's ou bandas, significa certamente que o hip hop evolui e que ganha em heterogeneidade, mas devemos questionar e ser cuidadosos nas divisões e classificações para não simplificar demasiado ou perpetuar determinados preconceitos que cultural e socialmente minam a nossa capacidade de, no hip hop, romper com os “rótulos” e critérios do “costume”.

O hip hop, enquanto “comunidade imaginada” por nós e para nós, enquanto espaço para identitariamente nos integrarmos de forma alternativa, ao mainstream e às dinâmicas sociais dominadoras, não deveria, na minha opinião, servir para perpetuar as divisões que culturalmente sempre serviram para segregar e oprimir (como classe, género, cor, etc.), mas pelo contrário, deveria ser um meio para questiona-las e reverte-las.

É apenas por isso que tenho cautelas quando se fala em “hip hop feminino”.

Seria importante esclarecer os critérios que definem o “feminino” no rap, saber se são “biológicos”, ou seja, saber se remetem simplesmente para o género das mc's, ou se de alguma forma se prendem com razões estilísticas ou estéticas, porque é comum ouvir dizer que existe um estilo feminino próprio ou uma musicalidade feminina no rap. Seria interessante perceber se é um “rótulo” que apenas vive do carácter minoritário e “alternativo” do grupo a que diz respeito, ou se mesmo que existissem tantas ou mais mulheres mc's como existem homens, continuaria recorrente. Eu acho que não.

Na minha opinião o termo alimenta-se precisamente da especificidade e do “exotismo” de se ser mulher mc, porque se assim não fosse existiria por contrapartida um “hip hop masculino”, ou noutros estilos em que não existe tanta discrepância de géneros, um “rock feminino” ou um “pop masculino”. Acontece que a norma não tem normalmente rótulo e apenas as excepções são sublinhadas pelas denominações particulares. Considero também que apesar de ser um termo maioritariamente determinado por um critério “biológico”, existe, muitas vezes, a sua extensão estilística, apesar de esta continuar pouco clara.

Por outras palavras, sem contudo rejeitar à partida que o rap das mulheres tenha características próprias, tenho algumas dúvidas em relação à existência de traços estéticos e estilísticos transversais a todas, ou pelo menos à maioria, das mc's em Portugal. E considero também que o facto de ainda não existirem muitas mc's ou bandas de mulheres, impede que se identifiquem traços característicos indubitáveis ou transversais e que se possa avaliar com maturação o grupo em causa e suas características musicais. Contudo, admito que se possam identificar algumas diferenças em relação aos homens, nas temáticas abordadas, nas perspectivas, em algumas escolhas estéticas ou na ausência de alguns elementos recorrentes no “hip hop masculino”, como é o caso da “egotrip”, mas sobre estas diferenças, mais não vejo do que o prolongamento do que cultural e socialmente é norma na vivência das mulheres. Assim, penso que estas diferenças tem origens ou justificações relacionadas, mais com regularidades sociais, do que propriamente com as razões “biológicas” ou “naturais”, que estão na base do termo em causa.

Associa-se a “hip hop feminino” um estilo mais próximo do soul ou do r'n'b do que propriamente ao rap, e nesse espírito pensa-se a “cantora” não como rapper mas sobretudo como uma mulher, não como uma colega, mas como alguém externo que vem dar um contributo “diferente”. Uma mulher a cantar como um complemento de uma faixa, um refrão cantado e não algumas rimas de rap, em determinados temas e em beats específicos, normalmente menos “agressivos”, resumem a presença do chamado “hip hop feminino” no “hip hop tuga”, já para não falar de uma tendência crescente para o aproveitamento da imagem feminina para entreter e colorir a “cena” hip hop nacional, à imagem do que acontece intensamente noutros países.

Aliás, neste contexto tão masculinizado, é comum a reprodução e até o engrandecimento de discursos sexistas nas mensagens e nas letras, mais talvez por influência de algum rap americano, mas certamente também por influências culturais milenares, que por estarem presentes nas nossas vidas, minam também as letras e a música.

Eu considero este fenómeno e a condescendência generalizada que o protege, inaceitáveis se pretendemos fazer do rap um veículo de consciencialização e influência positiva, principalmente dado o facto de o público do hip hop ser muito jovem e susceptível à “manipulação” de opiniões e atitudes.

Este é um ponto para mim muito interessante, já que se na minha “utopia” pessoal e intransmissível a tendência para que se reproduzam os fenómenos de divisão e segregação social e cultural, deveria ser revertida e questionada, dentro de um contexto identitário, que supostamente assume pretensões subversivas e contra culturais, como é o hip hop, e que ao assumir cegamente este “rótulo” contribui para “naturalizar” aquilo que socialmente é esperado das mulheres.

Por outras palavras, penso que o termo “hip hop feminino” ao ser baseado num critério biológico, “naturaliza” as diferenças estilísticas que, na minha opinião se prendem com as dinâmicas culturais que continuam a distinguir, muitas vezes de forma dissimulada, mas não menos opressiva, a vida de homens e mulheres, mc's ou não. Não contribuindo, assim, esta tendência, para que se questionem estas “reproduções” dentro do hip hop.

Mas voltando ao “hip hop feminino” e se o pensarmos agora apenas determinado por critérios estilísticos e menos “biológicos”, seria interessante reflectir se alguns rappers mais “sensíveis” (porque este é um termo que senso comunalmente é atribuído ao rap feminino) poderiam ser enquadrados neste “chavão”, ou se algumas mc's mais “agressivas” em conteúdos e estilo deixariam de ser “femininas” ao pegar no microfone.

Nesta linha, deveríamos pensar o que é que aproxima estilisticamente alguns rappers com cores, origens, classes sociais e géneros diferentes, se estas distinções têm assim tanto peso e, por outro lado, o que é que afasta alguns mc's, que dentro destes critérios poderiam corresponder à mesma descrição, e são tão distantes em termos musicais.

Pensar antes de avaliar e antes de rotular seria importante, porque num exemplo básico, as mulheres mc's tendem a não cair facilmente na “egotrip” ou a utilizar determinado tipo de linguagem, não por terem ovários ou por outra razão biológica, mas apenas porque socialmente não lhes é dado normalmente tanto espaço para que exibam agressividade, arrogância, espírito competitivo, para que usem termos jocosos ou “palavrões”, para que sejam “individualistas” e próximas da atitude “clássica” de “rapper”. E pensar que esta opinião é extremista ou infundada é rejeitar vários anos de pesquisa científica que desmistifica a dominação de causas fisiológicas nos comportamentos sociais de género e pensar no mundo pelos níveis de testosterona presentes em cada relação, atitude ou diferença.

Estas dinâmicas de distinção são diferenciadas e podem influenciar de formas variadas o percurso das mulheres mc's, na medida em que se, muitas vezes, temos de trabalhar três vezes mais para ganhar credibilidade e respeito pelos nossos pares e provar que não subimos ao palco para mostrar o decote e que gostamos mesmo de rap, no momento em que o conseguimos temos uma visibilidade acrescida precisamente porque somos minoria. O “exotismo” do rap feito por mulheres garante essa visibilidade, pelas mesmas razões que atrasa a atribuição de credibilidade, e é neste jogo, por vezes “perverso”, que trabalhamos para valorizar o nosso trabalho.

Eu faço hip hop, sou mulher, posso dizer que faço “hip hop feminino”, mas ainda mantenho as minhas dúvidas em relação aos “perigos” deste “rótulo”, porque na sua especificidade e ao promover o meu trabalho dentro dele, posso estar a perpetuar as diferenças e distinções do “costume” e a atrasar o dia em que não fará sentido dividir o hip hop por razões “biológicas”, ou qualquer outra que reproduza critérios de segregação e naturalize diferenças culturais, utilizadas desde sempre para fundamentar discursos e dinâmicas opressivas.

Veículos de promoção como o hiphopladies.org faz todo o sentido enquanto existirem artistas que se identifiquem com a sua função e utilidade, enquanto for necessário para promover um grupo de artistas votadas a uma certa “marginalidade”, enquanto conter um elo identitário partilhado e forte, mas deve evitar a alimentação do carácter específico, particularizado, “anichado” e isolado do “hip hop feminino” no contexto português, sob pena de servir o propósito oposto à sua criação.

Mais do que certezas, são dúvidas e questionamentos, mas certamente temas de interesse para a nossa evolução enquanto membros de contracultura ou simplesmente enquanto indivíduos ou cidadãos.

Fazemos música, para homens e mulheres, não considero que faça sentido que se avalie a nossa música por sermos homens ou mulheres. Mas entre ficarmos para sempre presas nas injustiças que gravitam em torno destas questões, podemos utilizar as suas “vantagens”, que neste caso é o “exotismo” que nos atribui visibilidade, para nos ajudar a ganhar voz e a atrair mais “animais raros” para os microfones, claro que sem nunca esquecer o carácter muitas vezes “perverso” deste “jogo” e sem deixar de o questionar e tentar “reverter”. E tendo noção que isto possa parecer contraditório, prefiro afirmar esta atitude mais como honestidade do que como conformismo ou aproveitamento e sublinhar a importância de trabalhar dentro e perto das questões para geri-las de forma activa e rumar à transformação.

Com consciência e trabalho deveríamos fazer mais próximo o dia em que já não faça sentido falar por “rótulos” e em que sejamos todos e todas mais livres de simplismos para sermos criativos, porque sobretudo… isto é música!

Capicua – SYZYGY

 

 

Quinta-feira, 29 de Março de 2007

Os 10 Mandamentos da Propaganda de Guerra

Saddam morreu. Não sei quem seguiu as informações nem como a notícia foi apresentada em Portugal, mas pela forma como foi apresentada no telejornal belga achei importante relembrar certos dados historicos e dar a conhecer a quem nao o conhece, o trabalho de Arthur Ponsonby. Provavelmente os telejornais até foram parecidos, senão identicos. Politologos descreviam Saddam como um péssimo estratega que invadiu o Koweit sem esperar represálias, e dois amigos de infância que o lembravam como uma criança solitária, batida pelo pai, que nunca teve amigos. Duvidoso e desinteressante.

Por analogia e curiosidade histórica, vamos relembrar a Primeira Guerra Mundial. Quem não estiver para ai virado que salte para o parágrafo seguinte. Esta Primeira Grande Guerra deixou historias impressionantes e indignadoras. Para além dos rumores, havia declarações oficiais de jornais que relatavam atrocidades. Mulheres a quem cortaram os seios, agricultores crucificados, familias inteiras torturadas e violadas, bébés cujas mãos eram cortadas, etc... E muitas outras supostas atrocidades das tropas alemãs. Nitti, o próprio primeiro ministro italiano da época, afirmou nas suas memorias que o (suposto) facto das tropas alemãs cortarem as maos aos bébés/crianças que se agarravam às saias das mães foi um dos motivos pelos quais a Itália entrou na guerra.

Anos mais tarde, quando as investigações terminaram, nenhum destes factos se revelou veridico. Ainda hoje se esperam os dados precisos pedidos a cientistas e intelectuais que afirmaram perante o povo terem sido testemunhas destas atrocidades. Ponsonby descreve então todas estas mentiras lançadas ao povo como meio de propaganda e recrutamento. A indignação criada no povo era convertida num sentimento de legitimidade, e mesmo de necessidade, de levar a cabo a guerra contra o Kaiser tirano, assassino e desumano que provocara a guerra. Demónio que, ironicamente, tinha fama de ser um dos mais apreciados “guest of honour” do Reino-Unido, de tão boa pessoa que era – afirmação feita num jornal britânico.

Felizmente, vivemos numa época em que a globalização e a comunicação social já não permitem manipulações tão descaradas... ou não. Devido à sua intima ligação ao poder, essa tal comunicação social, sem entrar em criticas, nao tem a multiplicidade nem a objectividade que pensamos. Nao se iludam, a maioria dos grandes jornalistas, da geração dos grandes politicos, tratam estes ultimos por “tu” nos bastidores. Fora os trabalhos privados de alguns revolucionários ou maniacos de teorias da conspiraçao, o grosso dos media está alinhado com os governos. Agora comparem os bébés de maos cortadas às armas de destruição massiça do Saddam. E a imagem das tropas alemãs à dos talibãs.

Baseando-se nos diferentes governos e serviços oficiais de propaganda da Primeira Guerra Mundial, Ponsonby estabeleceu, já por volta dos anos 20, alguns mecanismos essenciais da propaganda de guerra, relembrados e sintetisados recentemente em dez mandamentos pela historiadora Anne Morelli num livro sobre este tema. Ei-los:

 

1. Nós não queremos a guerra.

2. O campo adversário é unico responsável da guerra. Se somos nós a declara-la, é de forma preventiva. (cf. as alegadas armas e ataques, que nada tinham a ver com o Iraque)

3. O inimigo tem que ser personificado. Não se pode odiar globalmente, logo é necessario representar o leader inimigo como un louco, um tirano, um monstro, etc... (cf. Ben Laden, Saddam Hussein...)

4. A causa que defendemos é nobre, não são interesses particulares (cf. a democracia em oposiçao ao petróleo)

5. O inimigo comete conscientement atrocidades, e é costume fazê-lo (cf. talibas e métodos de Saddam Hussein)

6. O inimigo é que começou por utilizar (ou ter inteções de utilizar) armas ilegítimas (cf. gazes asfixiantes, bomba nuclear, armas biologicas)

7. As nossas perdas militares são reduzidas, as do inimigo são enormes (cf. Vietnam, Iraque...)

8. Os artistas e intelectuais apoiam a nossa causa (cf. Hegel e o regime Hitleriano)

9. A nossa causa é de caracter sagrado. O apoio do clero é solicitado e aplica-se a terminologia religiosa à guerra: inferno, apocalipse, sacrificio, martirio, milagre, etc...

10. Qualquer tentativa de questionar os pontos acima referidos, é visto como um acto de antipatriotismo ou até de traição.

É estranho como em quase um século os métodos nao evoluiram. História e crítica são disciplinas que deveriam fazer parte de todos os cursos, até de metamáticas ou de veterinária. São principios que depois de lidos podem parecer evidentes, mas que me pareceu importante salientar por até postumamente serem aplicados ao Saddam Hussein. E sobretudo porque a maioria de nós ainda vai nesta conversa da propaganda de guerra e diabolisação de leaders políticos. Sem mais rodeios, deixo aqui estes 10 Mandamentos da Propaganda de Guerra retirados do livro de Morelli, na esperança de vos dar mais um utensilio de análise da legitimidade das guerras actuais – e futuras, com certeza.

Renegas

 

 

 

 

 

 

 

 

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